terça-feira, 23 de novembro de 2010

Muricy, o New York Times e um novo golpe na praça

Acontece nas melhores famílias. E como consolo, torço para que já tenha acontecido com os melhores profissionais. Aconteceu comigo hoje. O entrevistado tá na cara do gol, ou seja, na sua cara, a bola passa e você deixa escapar o ponto fundamental da história. O ponto X. Ou G, como queiram... Muricy discorria no "Bate Bola 1ª edição" sobre o caso do garoto Wellington Silva, de 17 anos, já contratado pelo Arsenal londrino. Apontava para a absurda situação de um jogador do Fluminense viver dividido entre o clube e “estadias no Arsenal, quarenta dias cada vez”.

Como sabemos, a lei não permite transferências para menores de 18 anos. Nem a da Fifa nem a brasileira. Clubes europeus, empresários e afins encontraram várias formas de driblar a lei ao longo dos anos. Modalidades diversas. Mas Muricy apontou uma nova forma de mutreta e só veio me ocorrer depois, pensando no que tinha falado o treinador.

Tava na cara, estamos falando de um novo golpe, claro, de uma nova forma de burlar a lei. O garoto assina com o clube, para todos os efeitos segue no seu país, mas vive em temporadas de quarenta (quarenta!) dias no novo país até completar 18 anos. Detalhe: no caso do garoto tricolor, ele está indo para a terceira temporada de quarenta dias. Fazendo as contas, Wellington, que assinou com os ingleses em 31 de dezembro de 2009, fechará 2010 tendo passado 120 dias no Arsenal. Quase a metade do ano. Nesses períodos, participa de jogos por um time reserva do Arsenal. Como não existe “metade da lei burlada”, estamos evidentemente diante de um novo golpe na praça.

Se resta um consolo, ao menos a ficha caiu no mesmo dia. Tem golpe novo na praça: as tais “temporadas de adaptação”. Cujo outro nome é burlar a lei! O expediente tem sido usado frequentemente. O próprio Arsenal tem utilizado tal expediente costumeiramente. Luis Guilherme, goleiro do Botafogo, fez temporadas no Arsenal desde os 16 anos. Vários exemplos estão aí.

Nem tudo é derrota no dia. Abro a Folha de São Paulo e assunto correlato está com destaque. Uma matéria transcrita do New York Times dá conta e denuncia a criação, por fundos de investimento, de “academias” de beisebol pela América Central. Lugares onde meninos paupérrimos do lado de baixo do Rio Bravo são amontoados desde os 13 anos para um dia, quem sabe, dos 100, 120, um ou outro emplacar na Grande Liga. Se isso acontece, está pago o custo dos outros 100 devolvidos pra casa sem estudo, sem terem se preparado pra vida, criados longe da família.

Um professor de Direito Internacional da Universidade de Indiana definiu a prática ao tomar conhecimento: “É perturbador que investidores dos EUA lucrem com um sistema que explora e discrimina crianças pequenas”.
Me consolo um pouco. Nessa não me atrasei tanto. No dia 3 de agosto, aqui nesse blog, com o texto “20 ANOS DE DESRESPEITO AO ECA CRIOU BICHOS NO FUTEBOL”, contei minha experiência Brasil e mundo afora percorrendo essas aberrações que são o que batizei de “Criadouros” da bola, de beisebol ou de futebol. Com muitos risos, me deu vontade provincianamente orgulhosa de repetir o chilique que Caetano deu uma vez: “não me diz nada o New York Times”! No blog contei a experiência, denunciada há cinco anos atrás.

Está lá:“Em 2005, rodei o Brasil, países da América do Sul, México e Estados Unidos para a série de reportagens “Os Mercadores de Talentos”, para a televisão. Mostrava a ação e a exploração de empresários do futebol e do beisebol. O mesmo cenário que encontrava no futebol por aqui e na América do Sul descobri no México com o beisebol: meninos miseráveis levados para “centros de treinamentos”, verdadeiros criadouros, granjas humanas onde centenas de meninos se amontoavam. “Daqui vamos tirar alguns para as grandes ligas americanas de beisebol”, me contava um bedel, de olho nos meninos, numa granja humana em El Carmen, perto de Monterrey, no México. Acompanhei um “draft” nessa academia. Mexicaninhos de 14, 15, 16 anos, depois de anos morando na academia, sem estudar, vivendo para aquele dia, se exibindo como mercadorias para os scouts das grandes ligas. De 90, 100, uns dois ou três eram escolhidos. Os demais ganhavam um tapinha nas costas e o aviso de que o sonho tinha acabado.

Nunca me esqueci também da imagem dos caça-talentos das grandes ligas atrás de Dayan Viciedo, apontado como o futuro mais brilhante do beisebol. Dez, vinte, escoltando o pequeno cubano, tentando driblar a segurança, como caçadores de ouro. Na portaria do hotel onde equipes sub-17 jogavam, ofereciam mulheres espetaculares ao menino de 15 anos como forma de sedução. Acenavam com um dinheiro que jamais ouvira falar. Um ano depois, li a notícia de uma lancha que encostou em Cuba e levou Viciedo. Mike Brito, conhecido caça-talentos do Dodgers de Los Angeles, achou graça e morreu de rir quando perguntei sobre ética, leis e coisas relacionadas ao respeito das especificidades da infância e adolescência.”

Derrota da manhã amenizada, a essência é seguirmos identificando e denunciando os perversos mecanismos por onde caminha a tal evolução do esporte-negócio. Perceber quando o antigo procurador deu lugar ao empresário, quando esse virou fundo de investimento, e quando esses plantaram “Criadouros” por aí.

É uma tragédia terceiro-mundista, que ninguém tenha dúvida ou veja romantismo nisso. Uma máquina de moer gente, que vai soltando 100 trapos humanos por aí toda hora, pelos lucros de um. Ainda voltaremos muitas vezes a isso. E me envergonho profundamente do ofício quando vejo que, com tanto assunto por aí relevante, de vida ou morte sim, tem gente que perde tempo manjando a vida dos outros. Por isso também ainda voltaremos muitas vezes a isso.


Ps- e com tanta coisa pra ver, nosso Ministro só vive falando em aeroportos...

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