quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Para não falar de Ronaldinho: rali da morte severina vem ao Rio e o orgulho saharaui

Alguns versos alimentam a alma. Fazem levitar. Outros são como lâmina cortando a carne, dá pra sentir dor só de ouvir. Os imortais versos de “Morte e Vida Severina” pertencem a essa segunda categoria. Só um monstro sagrado como João Cabral de Melo Neto poderia, com palavras, resumir o que é uma “morte Severina”. Chico chegou perto quando disse que a “dor da gente não sai no jornal”, falando da gente humilde. Milton foi sucinto ao resumir que “nem tudo é o mesmo suor”. Mas “Morte e Vida Severina” é o resumo disso tudo. É mais do que qualquer um pode pensar para dar conta da desigualdade do mundo, das injustiças e das “riquezas injustas”, condenadas no evangelho, chamadas assim por Lucas e proclamadas séculos depois em versos também cortantes por Ernesto Cardenal.

Ninguém nasce sabendo que existem tais distinções, vidas e vidas, mortes e mortes, que nem tudo é o mesmo suor, e que na prática, pessoas são diferentes aos olhos da lei. E em alguns países muito mais. Mas a vida se encarrega de ir ensinando. Da mais dura forma, sempre. E quando se faz jornalismo e não se tem o cinismo como companheiro de viagem, as lições são presenças cotidianas. Era um estagiário saindo da ingenuidade do ofício quando vi a foto espetacular sendo vetada para a primeira página. Era um negro, desdentado e pobre. Não cabia na primeira página. Em uma tarde aprendi na prática os versos de Chico, constatando que “a dor da gente não sai no jornal”.

Uma notícia dos últimos dias me levou a esse inventário de vidas severinas, de dores que não incomodam ninguém por invisíveis que são. Me importou muito mais do que a “Novela Ronaldinho Gaúcho”, obrigatória, assunto dos últimos dias. Mas a tal notícia me interessou muito mais. Lamentavelmente. Estava lá, em tom quase de comemoração e boa notícia, a nota dando conta de que nos próximos anos o rali Dacar passará pelo Rio. E o Rio ainda pagará por isso...Ele mesmo, o rali da morte, o rali que ao longo dos anos deixou um rastro de mortes por onde passou. Mas mortes diferentes. Algumas com nome, outras Severinas, sem nome ou sobrenome, dor que não saia no jornal com nome, apenas com número. Afinal, nem tudo é o mesmo suor...

Faça você mesmo o levantamento das notícias do rali ao longo dos anos. Sempre que um piloto morreu, virou notícia mundial, com as devidas homenagens e dor. Mas comece a levantar quandos negros, pobres e desdentados africanos morreram ao longo desses anos em que o rali passou no continente africano e descobrirá mortes severinas, sem nome ou sobrenome, dores que não saiam no jornal.

Gente que não tinha nada a ver com a prova, moradores de vilarejos paupérrimos por onde passava o circo e muitas vezes tiveram seus barracos invadidos por bólidos patrocinados casa à dentro, ou estavam na beira da estrada e encontraram a morte. Desafio alguém a discordar: imagine tamanha quantidade de mortes na Europa ou Estados Unidos. Iria existir ainda o tal rali? Alguém já ouviu falar de indenizações justas para as famílias dessas vítimas? E a imprensa, já procurou contar a história dessas vítimas, quem eram, o que faziam, se foram indenizados, quanto foi? È que o mundo é assim mesmo, como descobrimos ao longo da vida: existem cidadãos de primeira categoria e outros de terceira, quarta, quinta...

Não foram poucos os africanos que nada tinham a ver com a prova assassinados nestes anos do safári sobre rodas dos ricos. E invariavelmente foram pé de página na imprensa mundial. Assim, a imprensa mundial noticiou que “em 1984, uma mulher perdeu a vida e sua filha ficou gravemente ferida após serem atropeladas em Burkina Faso”. Em 1985 foi a vez de “uma criança nigeriana perder sua vida, também atropelada”. O nome? Pouco importa. O valor da indenização? Se alguém souber que me conte, por favor. Imaginem uma morte dessas em Los Angeles ou Nova Iorque...Em 1998, “quatro pessoas morreram na Mauritânia...”. Um menino de 10 anos morreu na aldeia de Kourahoye, Guiné, assassinado pelo rali. Devia ter todos os sonhos dos meninos de 10 anos. Ninguém nem procurou saber nada sobre ele, sua família, o que fazia, se queria ser jogador, engenheiro, poeta, sobre a indenização. Se alguém souber algo, agradeço. No mesmo 2005, um outro de 12 anos morreu no Senegal. Era negro, pobre, africano...Alguma informação posterior?

Poucas coisas me escandalizam mais do que essa sequência de mortes severinas ao longo desses anos nesse rali. Uma história que ainda não foi contada e talvez nunca venha a ser.

Vale um parêntesis nessa história de vergonha. Uma página de altivez e orgulho. Como todos sabem, há alguns anos o rali não passa mais pela África. Não pelo rastro de mortes de nativos, que isso jamais importou. O que poucos sabem é a razão. Barrados pela brava gente saharaui, que vive uma das mais impressionantes histórias de um povo, acampados como refugiados há 35 anos na parte mais inóspita do planeta, em pleno Saara, na Argélia, perto da Mauritânia e do Marrocos. (quem quiser saber mais sobre a gente saharaui, convido para ver o documentário que fiz sobre o povo saharaui. Basta ir no You Tube e digitar: SAHARAUI DOC LÚCIO DE CASTRO). Cansados de ver o tal rali passar em sua terra e obter lucros absurdos e não compartilhar, os saharauis exigiram conversar. A organização não reconheceu os saharauis como interlocutores e se negou ao diálogo. As mais famosas e “secretas” agências de informação do mundo recomendaram aos organizadores que desistissem daquele trecho. Planos de explodir o rali eram iminentes. Por isso, apesar da pouca divulgação da realidade dos fatos, o rali agora passa pelo nosso continente. Argentina, Peru, Bolívia e em breve o Rio. Acho que não ocorreu aos organizadores o belo deserto americano como cenário...Alguma pista? Resta torcer que sejamos poupados de mais mortes severinas, agora ao nosso lado.

Ps- Esse texto é pela memória do menino Wesley de Andrade, vítima de bala perdida em plena sala de aula, numa escola no subúrbio de Costa Barros, em julho de 2010. Uma morte severina. Dois dias depois da morte de Wesley, a notícia foi banida do noticiário. Ninguém mais fala na aberração que foi a morte de Wesley. Fosse em uma escola da zona sul, provavelmente até a constituição do Brasil teria mudado.



O meu nome é Severino,
como não tenho outro da pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria.
Como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos:é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da Serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos
já finados,Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.


Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

João Cabral de Melo Neto

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